a partir da série “mutações furtivas”
Um tema de fundo – o acaso como espelho dos comportamentos humanos
O acaso na arte contemporânea é muitas vezes entendido como um processo técnico: gestos improvisados, acidentes voluntários, dispositivos incontroláveis. Para René Mayer, não se trata de uma abordagem central. Sua prática se caracteriza pelo rigor, pela construção e pela atenção ao detalhe. Mas na série “Mutações furtivas”, o acaso se torna um tema principal: não o da técnica, mas o do jogo que os humanos travam com a natureza. Mayer o resume assim: “Jogamos com a Terra como se fosse um cassino.”
A ficha de cassino está no centro dessa reflexão. Fixada sobre a tela, condensa a ideia de aposta, de especulação, de crença na sorte. O acaso na arte contemporânea assume aqui uma dimensão crítica: reflete nossa tendência de transformar escolhas coletivas em jogos de azar cujo resultado nos escapa.
O pêndulo – uma experimentação pontual
Em certas telas, René Mayer recorreu a um pêndulo carregado de tinta. Suspenso acima da tela, ele desenha trajetórias imprevisíveis. Esse elemento aleatório, embora marginal em sua obra, dialoga com o rigor das tramas de fichas. O efeito repousa no contraste: de um lado, a instabilidade das linhas produzidas pela gravidade; de outro, a ordem estrita das grades e dos degradês.
O acaso na arte contemporânea, tal como aparece nessas experimentações, não substitui o domínio, mas atua como contraponto. Mayer não renuncia ao controle de sua obra: apenas deixa entrar uma parte do inesperado para sublinhar o desvio entre ordem e imprevisível.
Fichas e grades – rigor contra instabilidade
A série “Mutações furtivas” organiza-se em torno de grades regulares compostas por fichas de cassino. O primeiro efeito é o de uma estrutura estável, quase algorítmica. No entanto, o observador logo percebe microdeslocamentos: uma variação cromática, uma inclinação mínima, um alinhamento perturbado.
Esse desequilíbrio introduz uma instabilidade interna. O acaso na arte contemporânea manifesta-se então menos na técnica do que na percepção: o espectador entende que toda ordem carrega em si uma falha. Mayer mostra que os sistemas humanos, mesmo os mais rigorosos, são atravessados por desvios invisíveis.
Comparações – de Duchamp a Morellet
A história da arte multiplicou experiências em torno do imprevisível. Duchamp jogou com os Stoppages étalon, Cage recorreu ao I Ching, Pollock explorou o dripping, Arp deixou cair seus papéis ao acaso. No entanto, René Mayer se distingue: o aleatório permanece secundário. Não define nem o método nem o conjunto de sua obra.
Poderíamos aproximá-lo mais de Morellet ou de LeWitt, onde o sistema e a regra enquadram o desvio. Em Mayer, o desvio assume a forma simbólica da ficha: sinal de um jogo arriscado, inserido em uma trama sólida, mas sempre suscetível de fissurar-se. Aqui, o acaso na arte contemporânea não é espetáculo, mas inquietação discreta.
Acaso e responsabilidade – um contraste ético
Integrar o acaso levanta uma questão ética. Quando uma escolha se torna uma aposta, quem assume as consequências? O artista? O espectador? A sociedade? René Mayer não se esconde atrás do aleatório: ele o utiliza para interrogar nossa relação coletiva com o risco.
Em suas telas, a ordem vacila. Não é o caos que se impõe, mas uma tensão: ainda percebemos a beleza global quando vemos aparecer a falha? O acaso na arte contemporânea é aqui utilizado para iluminar a fragilidade de nossas estruturas, sem barulho nem provocação, mas com insistência.
Uma obra em tensão – ordem e desvio
O que singulariza certas obras recentes de “Mutações furtivas” é a tensão permanente entre rigor e abertura. As grades impõem uma organização estrita, mas o olhar se detém nas variações que rompem a regularidade. O aleatório, introduzido às vezes pelo pêndulo, acentua esse contraste: o traço livre e instável se opõe à ordem das fichas.
Assim, Mayer propõe uma dupla experiência: contemplar um sistema aparentemente estável e, em seguida, descobrir que ele repousa sobre uma falha latente. O acaso na arte contemporânea torna-se aqui um aprendizado do olhar: trata-se de aprender a perceber o que desliza sob a superfície ordenada.
Conclusão – o acaso como sinal, não como método
Para René Mayer, o acaso não é um método constante. Permanece marginal em sua prática, mas assume um valor simbólico forte na série “Mutações furtivas”. Ali, torna-se o sinal de um comportamento humano que confunde segurança e aposta.
Nesse sentido, o acaso na arte contemporânea não é efeito gratuito nem procedimento técnico, mas uma ferramenta crítica. As obras de Mayer lembram que nossas estruturas mais sólidas repousam sobre uma instabilidade oculta. Não buscam demonstrar, mas sugerir: jogamos com a realidade como com um cassino, sem perceber que a partida pode virar de repente.