A ANULAÇÃO DA PERSPECTIVA – UMA RUPTURA REFLETIDA COM PROFUNDIDADE

Na história da pintura ocidental, a perspectiva linear foi, durante muito tempo, a principal ferramenta para organizar o espaço visual segundo um modelo racional. Desde Brunelleschi e Alberti, o quadro é concebido como uma janela aberta para o mundo, centrado em torno de um ou vários pontos de fuga, cuja função é simular a profundidade tridimensional. Esse sistema, herdado do Renascimento, foi reforçado pelas pesquisas de artistas como Piero della Francesca, Leonardo da Vinci e Andrea Mantegna, antes de se tornar um cânone acadêmico.

O ‘annullamento prospettico’ — ou anulação da perspectiva — designa a recusa deliberada dessas convenções. Não se trata de um relaxamento técnico, mas de um gesto crítico: uma forma de achatar o espaço, neutralizar a profundidade, abolir as hierarquias visuais, a fim de reafirmar a superfície como local de ação. Essa inversão não corresponde a um estilo particular. Ela atravessa tanto as primeiras experimentações cubistas de Picasso e Braque — em que a multiplicação dos pontos de vista desfaz a coerência espacial — quanto o construtivismo russo de Lissitzky, a radicalidade de Kazimir Malevitch, as telas quadriculadas de Agnes Martin ou os dispositivos frontais de Josef Albers.

Na arte contemporânea, essa estratégia torna-se uma questão conceitual por si só. Ela interroga menos o espaço a representar do que as próprias condições da representação. A imagem deixa de ser uma ilusão: torna-se estrutura. A anulação da perspectiva é assim empregada para desviar a atenção do sujeito representado para a linguagem plástica em si. Esse deslocamento transforma a pintura em um campo de experimentação, onde o ato de ver também é um ato de pensar.

A arte abstrata, em particular, ofereceu um terreno fértil para essa virada. O quadro deixa de ser um espaço a ser atravessado para se tornar um plano a ser habitado. Mas é importante destacar que a anulação da perspectiva não é inerente a toda abstração. Certos pintores abstratos mantêm efeitos de espacialização: pensemos nos ‘glacis’ profundos de Mark Rothko, nas massas estratificadas de Nicolas de Staël ou nas flutuações ópticas de Olga Rozanova. Outros, ao contrário, afirmam a frontalidade radical do suporte — Piet Mondrian com suas composições ortogonais, Ad Reinhardt com seus monocromos quase invisíveis ou Barnett Newman com seus ‘zips’ verticais.

Em todos os casos, essa recusa da profundidade nunca é um fim em si mesma. Trata-se de uma escolha estratégica, que envolve uma reflexão sobre a imagem. O espaço não é mais simulado: ele é reconstruído. E é nessa tensão, entre herança da perspectiva e planitude assumida, que reside uma parte essencial da modernidade pictórica.

Uma escolha plástica, não uma simples consequência da abstração

Na obra de René Mayer, o cancelamento da perspectiva não é uma consequência automática da abstração, nem uma simples característica formal. Trata-se de uma escolha deliberada, de uma decisão plástica e intelectual que permeia todo o seu trabalho. Embora suas obras não apresentem nenhuma figuração realista, elas poderiam, como tantas outras da pintura abstrata, introduzir indícios espaciais: efeitos de profundidade, gradações de escala, tensões diagonais. Mas isso nunca acontece. Não há horizonte, nem centro, nem ponto de fuga. O espaço não é sugerido; ele é recusado. Tudo acontece no plano, sobre o plano, com o plano.

Essa recusa estrutural confere à sua obra uma coerência perceptiva singular. A superfície pictórica não é concebida como mero suporte: ela se torna o próprio lugar da ação. Nesse sentido, o cancelamento da perspectiva transforma-se em uma ferramenta crítica, que impede qualquer leitura ilusionista e recentra o olhar nas relações internas entre as formas. O que René Mayer constrói não é uma imagem, mas um campo de tensões visuais.

Em suas pinturas, os elementos geométricos — quadrados, círculos, grades, estratos, pontuações lineares — coexistem sem jamais se organizarem segundo uma profundidade ótica. Eles se cruzam, se sobrepõem, se interrompem, mas permanecem equidistantes do olhar. O espectador não é convidado a entrar na imagem, mas a circular sobre sua superfície. Essa frontalidade, assumida com rigor, propõe uma outra leitura do mundo: não mais a partir de um ponto de vista fixo e soberano, mas a partir de um equilíbrio dinâmico entre forças visíveis. É nesse sentido que a obra de René Mayer vai além da abstração: ela questiona a própria possibilidade de uma visão focalizada.

“Caixas” – o plano como prisão e fuga

A série “Caixas” constitui um exemplo paradigmático da relação que René Mayer mantém com o cancelamento da perspectiva. À primeira vista, algumas telas podem evocar um espaço organizado, uma ordem espacial estável, quase arquitetônica. As grades, os alinhamentos, as recorrências de formas geométricas dão brevemente a ilusão de uma estrutura controlada. Mas essa impressão logo se desfaz. Nenhum indício permite construir uma profundidade coerente. Não há chão nem horizonte, nem ponto de fuga nem linha de perspectiva. Tudo se desenrola em uma frontalidade absoluta. As formas, embora ordenadas, não obedecem a um sistema de projeção. Elas coexistem no mesmo plano, sem hierarquia espacial, em um espaço que nunca busca simular a realidade tridimensional.

Essa planaridade assumida está longe de ser neutra. Ela participa de uma estratégia visual e simbólica precisa. Nesta série, o quadrado — forma central e recorrente — nunca é simplesmente decorativo. Ele evoca tanto a cela quanto a caixa, o enquadramento imposto, a proteção, o confinamento. Essa ambivalência visual ressoa com uma tensão ética: estamos confinados para sermos protegidos, ou protegidos ao custo do nosso confinamento? Ao recusar inscrever essas figuras em um espaço profundo, René Mayer radicaliza a posição do observador. Este não pode escapar para um pano de fundo reconfortante. Ele é mantido diante da superfície, forçado a uma leitura crítica do que vê.

Essa posição se aproxima das análises que Michel Foucault desenvolve em ‘Vigiar e punir’ ou em seus trabalhos sobre dispositivos de confinamento. O quadrado, nessa perspectiva, pode ser lido como um diagrama do poder, um lugar onde o visível se torna uma forma de controle. Mas, onde os sistemas disciplinares procuram dissimular sua autoridade por trás de uma falsa transparência, René Mayer expõe a estrutura. Ele não a camufla com os artifícios da perspectiva. Ao contrário, ele revela suas tensões internas.

É aí que o cancelamento da perspectiva adquire todo o seu sentido. Ele não é apenas uma redução formal. Atua como um gesto crítico, uma forma de suspender a narrativa espacial para concentrar a atenção na relação entre os elementos. Ao renunciar a qualquer profundidade, René Mayer rompe com a ilusão da distância. O espectador se vê confrontado com uma superfície saturada de tensões gráficas: quadrados abertos ou fechados, círculos atravessados, pontas agudas, tramas repetitivas. Cada um desses motivos atua como uma força presente. Não se trata de símbolos, mas de dinâmicas plásticas.

Alguns críticos já associaram essa estratégia à de Josef Albers na série ‘Homage to the Square’. Lá também, os quadrados se sucedem, se sobrepõem, se respondem, sem nunca construir uma ilusão de espaço. Mas em René Mayer, a dimensão política é mais evidente. Enquanto Albers explora a percepção cromática, René Mayer confronta as formas com tensões sociais implícitas. O quadrado não é apenas um módulo visual: ele se torna uma figura de atribuição, de ordem imposta, de enquadramento normativo. O uso de elementos perturbadores — grades quebradas, formas penetrantes, bordas apagadas — reforça essa tensão. Esses elementos nunca atuam como ornamentos. Eles não perfuram um volume imaginário. Eles vêm romper a regularidade do plano, não para revelar uma profundidade oculta, mas para mostrar que a própria superfície é um campo de conflito. O que René Mayer encena é um espaço onde as formas se opõem, se tocam, se atravessam, mas sem jamais escapar.

Nesse contexto, o cancelamento da perspectiva não é um efeito estilístico: é uma condição de possibilidade. Ele impede o olhar de fugir. Obriga a confrontar os elementos visuais em sua simultaneidade, sua copresença, sua irredutibilidade. Essa escolha inscreve a obra numa tradição de frontalidade crítica, herdada do modernismo, mas reconfigurada aqui numa perspectiva contemporânea. Pode-se também evocar os trabalhos de Daniel Buren, que utilizam repetição e planaridade para neutralizar a profundidade e afirmar a autorreferencialidade do suporte.

Mas em René Mayer, essa autorreferencialidade nunca ocorre em detrimento do sentido. A tela continua sendo um espaço de questionamento. Ela interroga nossas relações com o espaço, a norma, a visibilidade. O olhar, impedido de entrar na imagem, é convidado a medir sua densidade. Já não se trata de contemplar uma cena, mas de enfrentar uma situação. O plano torna-se um espelho sem profundidade, mas carregado de intensidade.

Assim, a série “Caixas” não se contenta em suspender a perspectiva: ela a anula para fazer surgir uma nova relação com o visível. Uma relação em que o que é mostrado não remete a nada exterior, mas atua aqui e agora, na frontalidade silenciosa de uma tela sem fuga.

Terra vibrante” – nivelar o mundo para revelar suas tensões

A série “Terra vibrante” ilustra, sob uma outra modalidade plástica, a mesma orientação formal que os demais conjuntos pictóricos de René Mayer. Aqui também, a anulação da perspectiva constitui um dos fundamentos da composição. Mas o tratamento da superfície se dá através de uma camada suplementar: a da matéria. René Mayer introduz papel amassado, colado, pintado, que rompe com a planura uniforme do suporte tradicional. Esse relevo tátil, no entanto, não induz nenhuma ilusão de profundidade óptica. Não busca simular volumes, mas traduzir fisicamente os sobressaltos de uma superfície ferida, trabalhada, agitada por abalos internos. Não se trata de um modelado ilusório como nos panoramas da pintura barroca, mas de um amassado real, frontal, sem perspectiva.

Esse amassado materializa uma terra sem escala, sem horizonte, sem ponto de ancoragem. O olhar sobrevoa um espaço visto de cima, como um mapa geológico sem grade de coordenadas, onde a própria superfície se torna um palimpsesto. A esse campo orgânico vêm se somar formas geométricas cortantes — triângulos, quadrados, retângulos, círculos — cuja nitidez contrasta radicalmente com os acidentes do papel. Esses elementos não são integrados para estruturar um espaço profundo, mas para agravar a tensão do plano. Eles não sugerem perspectiva atmosférica, nem espacialização simbólica. Impõem-se como recortes arbitrários, como intervenções estrangeiras sobre um solo em resistência.

Pode-se pensar em certas obras de Robert Smithson, notadamente seus ‘Non-Sites’, onde materiais deslocados e postos em tensão compõem estruturas que escapam à ilusão e se apresentam como confrontos brutos entre forma e solo. Ou em Alberto Burri, cujos ‘Cretti’ ou telas queimadas afirmam a materialidade irredutível da superfície como lugar de fratura e de memória. Em René Mayer, contudo, essa materialidade permanece inseparável de um trabalho gráfico. O papel amassado não é deixado à própria sorte: ele é submetido a uma orquestração precisa, pensada em interação com formas definidas. A imagem é construída, não produzida por acaso.

Nesta série, a anulação da perspectiva opera-se, portanto, por dois caminhos: a ausência de profundidade óptica, por um lado, e a copresença conflituosa da matéria e do grafismo, por outro. Esse duplo plano de ação impede toda interpretação ilusionista. O espectador não pode projetar seu olhar para um além visual. Permanece confrontado a uma superfície agitada, cortada, trabalhada por formas que não visam unificar o espaço, mas abri-lo como uma ferida. A superfície torna-se um campo de luta, um plano de tensão entre forças contrárias: o flexível e o rígido, o aleatório e o geométrico, o amassado e o traço.

Essa escolha formal remete a certas reflexões formuladas por Georges Didi-Huberman sobre a superfície como lugar do acontecimento visual. Em ‘O que vemos, o que nos olha’, ele escreve que ‘o visível nunca é dado como um todo, mas sempre dilacerado, talhado, acidentado’. É precisamente isso que René Mayer dá a ver: um visível conflituoso, fragmentado, sem coesão global, onde o olhar não é absorvido, mas mantido em uma forma de tensão ativa.

A terra, aqui, não é representada como paisagem, nem como natureza idealizada. É evocada como superfície vulnerável, atravessada, disputada. Não é nem uma cena nem um fundo, mas um campo de forças. Pode-se aproximar essa abordagem da de Mona Hatoum em certas obras cartográficas onde os territórios são redesenhados como zonas de conflito, e não mais como entidades estáveis. Mas onde Hatoum mobiliza referências geopolíticas explícitas, René Mayer opera em uma abstração radical, onde o significado permanece suspenso.

Ao recusar toda perspectiva, toda espacialização hierarquizada, René Mayer impede a identificação de um ponto de vista central. Não há espaço para o olhar soberano, para a visão panorâmica. Essa postura se insere em certas críticas dirigidas à perspectiva desde o século XX, notadamente por artistas do minimalismo ou da ‘land art’, que viam no sistema perspectivo um instrumento ideológico de dominação. A anulação da perspectiva em René Mayer atua assim como uma silenciosa crise do olhar. Priva a imagem de profundidade não para achatá-la, mas para ativá-la. A superfície torna-se uma cena de interrupção, um lugar onde não se contempla, mas se enfrenta.

O que se desenrola em “Terra vibrante” não é, portanto, uma representação da natureza, mas uma confrontação com a própria materialidade da imagem. O quadro deixa de ser janela para tornar-se muro. Um muro que não dissimula, mas expõe. Um muro que não separa, mas resiste.

“Mutações furtivas”geometria do acaso sobre um plano controlado

A série “Mutações furtivas”, que tem a ficha de cassino como motivo recorrente, leva ao extremo a lógica que René Mayer aplica ao conjunto de sua obra pictórica. A organização é de uma grande precisão, mas essa precisão não produz nem espaço ilusionista nem efeito de profundidade. As fichas são pintadas ou coladas com uma precisão quase algorítmica, mas sem recorrer às convenções visuais da perspectiva. Dispostas em grupos, em linhas descontínuas, por vezes em figuras quase simétricas, elas não constroem nenhum volume. Sua disposição não obedece a um ponto de fuga: desfaz qualquer centralidade, qualquer hierarquia espacial. Essa recusa não é passiva: ela encarna uma forma de resistência à lógica clássica da composição.

Cada ficha possui uma presença própria. Seus tamanhos variam, suas cores se opõem ou se encaixam, mas nunca numa lógica de proximidade ou afastamento simulados. São unidades gráficas, não objetos representados. Não estão mais próximas nem mais distantes: estão ali, colocadas no mesmo plano, equidistantes do olhar. Essa planicidade afirmada inscreve a série numa tradição plástica que remonta às primeiras abstrações geométricas do século XX, mas se distingue pela tensão mantida entre estrutura e perturbação. O conjunto por vezes evoca o equilíbrio instável das composições de Sophie Taeuber-Arp, ou ainda os arranjos não hierárquicos de André Cadere, mas sem nunca ceder ao caos ou à espontaneidade.

É nesse quadro rigoroso que a anulação da perspectiva opera como uma escolha decisiva. Ela neutraliza toda possibilidade de narrativa espacial. Impede o olhar de construir um plano de fundo ou de imaginar uma trajetória em profundidade. O olhar é, portanto, condenado a permanecer na superfície, a circular lateralmente, a examinar as relações entre os elementos em vez de situá-los. Esse gesto crítico lembra certas análises de Rosalind Krauss sobre a grade modernista: ao recusar a profundidade, a grade torna visível a própria estrutura da imagem. Mas onde Krauss identifica uma lógica de autonomia, René Mayer introduz a desordem na ordem, o acaso no sistema.

Pois as fichas, embora perfeitamente integradas ao plano, não são regidas por uma mecânica pura. Sua distribuição segue uma lógica interna, sim, mas essa lógica é difícil de reconstruir. Ela resiste à análise. A impressão geral é a de um sistema organizado para acolher o imprevisível. O espectador pode perceber motivos, sequências, simetrias — mas esses pontos de referência são logo embaralhados, deslocados, desmentidos. Essa oscilação visual mantém a atenção numa tensão contínua. Nada se estabiliza.

Essa instabilidade aparente é um dos efeitos mais sutis da anulação da perspectiva. Ao recusar toda espacialização clássica, René Mayer impede o olhar de se instalar num conforto visual. Não se trata aqui de recusar a ordem, mas de recusar uma ordem reconfortante. O quadro não é um lugar de projeção, mas de confronto. O espectador não entra na imagem: ele se confronta com ela. O plano age então como um campo magnético, onde cada elemento atrai ou repele os outros sem produzir ilusão de profundidade. A pintura torna-se um sistema sem centro, um espaço sem orientação.

Esse tipo de composição se aproxima, em certos aspectos, das pesquisas de John Cage no domínio musical, onde o aleatório não é um abandono da forma, mas uma maneira de deslocar a intenção. Em René Mayer, não é o acaso que governa a superfície, mas uma estrutura que acolhe desequilíbrios medidos. A anulação da perspectiva torna-se então o meio de conter essas forças divergentes num mesmo plano, sem jamais hierarquizá-las. A unidade do quadro nasce não da perspectiva, mas da convivência das singularidades.

Podemos evocar também, num registro mais conceitual, a proximidade dessa série com certas obras de Hanne Darboven ou de Roman Opalka, onde o acúmulo de signos repetidos produz uma experiência tanto temporal quanto visual. Em “Mutações furtivas”, o motivo da ficha é ao mesmo tempo imagem, unidade de medida e perturbação rítmica. Ele cria uma relação com o tempo pictórico, com a repetição, com a variação, sem jamais ceder à narrativa nem à espacialização.

Assim, a série “Mutações furtivas” cristaliza uma tensão própria do trabalho de René Mayer: a de uma superfície regida por leis internas, mas aberta à incerteza. A anulação da perspectiva não é aqui uma simplificação, mas um refinamento. Ela permite manter o olhar numa forma de instabilidade fecunda, onde cada elemento conta, mas nenhum domina. O plano já não é o suporte de uma profundidade oculta: é o lugar onde se desenvolve um pensamento plástico exigente, capaz de acolher o aleatório sem desarmá-lo.

A ausência de profundidade como princípio estruturante

A anulação da perspectiva na obra de René Mayer não pode ser lida como uma simples decisão formal ou um efeito estilístico herdado da abstração modernista. Esse gesto não deriva nem do formalismo nem de uma citação histórica: ele se inscreve numa orientação fundamental de seu trabalho, numa forma de posicionar o olhar e de construir a imagem. A ausência de profundidade funciona aqui como um princípio estruturante, assim como a frontalidade ou o equilíbrio das formas. Recusar a profundidade é recusar a hierarquia implícita que a perspectiva organiza. É renunciar a uma visão de mundo fundada na dominação de um ponto de vista único, no primado do sujeito observador, na estruturação de um espaço submetido à lógica da projeção. Nesse sentido, a anulação da perspectiva funciona como uma desativação da distância. Ela anula a possibilidade de um plano de fundo, de um além visual, para forçar o olhar a permanecer aqui, agora, diante da superfície.

Essa escolha implica uma mudança radical: cada forma conta, não por sua posição em um espaço ilusório, mas por sua interação imediata com as outras. Cada elemento está no mesmo plano — tanto em sentido literal quanto conceitual. Já não existe profundidade para se refugiar, nem um cenário para abrigar o imaginário. O quadro torna-se um campo ativo, um lugar de confronto entre signos, cores, gestos, matérias. Essa frontalidade, que poderia parecer austera, produz ao contrário uma intensidade particular: a da copresença, da densidade visual, do olhar sem escapatória.

Nessa ótica, a anulação da perspectiva encontra ecos nas reflexões críticas desenvolvidas a partir dos anos 1960 por artistas como Hans Haacke, Daniel Buren ou Adrian Piper, que questionaram as condições de visibilidade e os regimes de representação. Mas em René Mayer, esse gesto não passa pela textualidade nem pela instalação. Ele se expressa pela precisão plástica, pela construção cerrada do plano, pela economia de efeitos. Trata-se menos de denunciar que de mostrar de outra maneira: fazer da pintura um espaço não hierárquico, onde a lógica do olhar já não reproduz a do poder.

Essa lógica é constante, seja qual for a série. Em “Finitude”, os corpos justapostos ou recortados, tirados de fotocópias anônimas, não obedecem a nenhuma hierarquia ótica. Eles são organizados como fragmentos flutuantes, submetidos a variações cromáticas ou filtros, mas sempre num mesmo plano, sem profundidade nem encenação. Da mesma forma, na série “Olhos”, os motivos oculares estão dispersos sem ponto de convergência. O olhar não se fixa sobre um objeto: ele é devolvido a si mesmo, capturado numa rede de signos sem direção.

Na série “Experimentos”, essa lógica torna-se ainda mais evidente. Os elementos geométricos, as tramas mecânicas, os ritmos cromáticos se respondem num campo sem hierarquia. O quadro não é uma cena. É uma estrutura. E essa estrutura nada esconde: ela afirma sua materialidade, sua bidimensionalidade, sua presença nua. A ausência de profundidade não é um limite, mas uma condição de legibilidade. Ela permite pensar a imagem como um sistema de interações, e não como uma representação do mundo exterior.

É importante insistir que essa recusa da profundidade não conduz, na obra de René Mayer, a uma rigidez ou a um frio analitismo. Ao contrário, é essa escolha radical que abre um espaço de sentido. A pintura torna-se um lugar de atenção, um exercício do olhar. Não se trata de um espaço para se entrar, mas de um campo em que se está envolvido. A obra não oferece uma viagem, mas uma tensão. Ela não guia: ela exige.

É assim que a anulação da perspectiva se torna um princípio. Ela marca uma posição no campo visual: não seduzir pela ilusão, não lisonjear o olhar, mas ativá-lo de outra forma. Afirma que cada forma merece ser olhada por si mesma, e não por seu papel numa composição narrativa. Essa inversão, discreta mas fundamental, faz da pintura de René Mayer uma prática de justeza. Justeza do plano, justeza das formas, justeza do olhar.

Conclusão – Um olhar sem ponto de fuga

Longe de um simples rompimento ou de uma rejeição da tradição, o cancelamento da perspectiva em René Mayer impõe-se como um princípio estruturante. Essa escolha formal atravessa toda a sua obra pictórica de forma discreta, mas constante. Não se trata de uma recusa dogmática da profundidade, mas de uma maneira de reorganizar o campo visual fora de qualquer hierarquia espacial. A tela deixa de ser uma janela: torna-se uma superfície tensionada, ativa, onde cada elemento existe em igualdade com os outros, sem ponto de fuga, sem centro de gravidade.

Nessa frontalidade assumida, nada se projeta, tudo se apresenta. As formas não estão ali para sugerir uma ilusão, mas para instaurar uma relação. Seja nos quadrados atravessados da série “Caixas”, nas terras enrugadas de “Terra vibrante” ou nos motivos dispersos de “Mutações furtivas”, o olhar nunca é conduzido para um plano de fundo. Ele permanece em contato direto com a superfície, forçado a circular por ela, sem uma perspectiva que permita escapar. Esse deslocamento modifica a maneira de olhar, mas também aquilo que se olha: a pintura torna-se um campo de operações, e não de representações.

Esse plano, em René Mayer, vale não apenas pelo que recusa — a profundidade, a simulação, o ponto de vista central — mas pelo que permite: a copresença das tensões, o equilíbrio entre estrutura e perturbação, a leitura lateral das formas. É essa escolha do plano, assumida como base composicional, que dá ao seu trabalho sua coerência visual. Cada quadro é construído como um espaço sem exterior, no qual não se entra, mas que se enfrenta, em sua organização silenciosa.

Assim, recusar a perspectiva não é negar o espaço: é reconfigurar suas condições. Esse gesto, na obra de René Mayer, não é nem retórico nem teórico. É plástico, rigoroso e profundamente estruturante. Ele condiciona a imagem, orienta o olhar e afirma uma posição: a de uma arte que não guia, mas propõe — que não mostra um mundo, mas constrói uma superfície onde o real se apresenta de outra forma.

derniers articles

Abonnez-vous à notre newsletter

Pas de spam, notifications uniquement sur les nouveaux projets.